Condenação de Bolsonaro por golpe de Estado não sepultaria bolsonarismo, afirmam autores de novo livro sobre ‘Brasil Profundo’
Indiciado por suposta tentativa de golpe de Estado e impedido de disputar eleições, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é hoje uma figura em declínio, afirmam os autores do livro recém-lançado O Bolsonarismo e o Brasil Profundo (Quipá Editora) em entrevista à BBC News Brasil.
Por outro lado, analisam os pesquisadores, as eleições municipais mostraram que o movimento bolsonarista continua vivo na cena política, mas em processo de transição, disputado por novas lideranças.
Os doutores Fábio Baldaia, Tiago Medeiros, Sinval Silva e Rodrigo Ornelas integram o Laboratório de Estudos Brasil Profundo, ligado ao Instituto Federal da Bahia (IFBA), que tem o bolsonarismo como um dos temas de pesquisa desde 2020.
Os quatro uniram suas formações em diferentes áreas, como sociologia, história e filosofia, para analisar a origem e a resiliência do movimento, inicialmente liderado pelo ex-presidente.
No novo livro, eles argumentam que a força do bolsonarismo vem de sua capacidade de articular diversos valores e características de longo prazo da sociedade brasileira, como o simplismo, o messianismo, o autoritarismo, o “malandrismo”, o antidecoro, o autoditatismo e o machismo, parte dos elementos que formam o “Brasil Profundo” — conceito que o grupo utiliza para analisar diferentes fenômenos da sociedade brasileira.
Os pesquisadores apontam, por exemplo, como o bolsonarismo ganha adesão na sociedade ao apresentar soluções simples e autoritárias para problemas complexos como a violência (“basta deixar a polícia trabalhar”) ou a educação (“basta impor disciplina”), ao mesmo tempo que usa o que os autores chamam de “malandrismo” para “escorregar entre as regras” e mascarar seus desrespeito à institucionalidade.
Um uso desse “malandrismo”, ressaltam, é a insitência de Bolsonaro em argumentar que “joga dentro das quatro linhas da Constituição” mesmo quando admite que discutiu decretar Estado de Sítio no país com o comando das Forças Armadas, como parte da contestação da vitória eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Essas atitudes agora podem render um processo criminal contra Bolsonaro e outros indiciados por tentativa de golpe de Estado. Mas, para os pesquisadores, o enraizamento do bolsonarismo nos valores do Brasil Profundo deve mantê-lo vivo, mesmo que uma condenação se confirme.
Eles ressaltam, porém, que o próprio Bolsonaro pode se recuperar. A avaliação é que será difícil o ex-presidente reverter sua inelegibilidade para a eleição de 2026, mas não descartam alguma reviravolta jurídica mais para frente, como ocorreu com Lula, que reverteu em 2021 sua condenação na operação Lava Jato, após ter ficado impedido de disputar a eleição de 2018.
Para os autores, foi também a capacidade de Lula de se conectar com as massas e mobilizar parte desses elementos do “Brasil Profundo” que permitiu ao PT, em articulação com partidos da centro-direita, conquistar a Presidência da República cinco vezes.
Hoje, porém, há um vazio de lideranças com esse potencial no campo da esquerda, avaliam, assim como uma limitação desse campo em apresentar soluções concretas para problemas reais da população, como a precarização do mercado de trabalho e a violência urbana. Um cenário que deixa a esquerda encurralada.
A BBC News Brasil conversou com autores do livro em dois momentos de novembro, abordando o impactado das eleições municipais e do indiciamento de Bolsonaro sobre o bolsonarismo.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista com Medeiros e Baldaia, editada por razões de concisão e clareza.
Fábio Baldaia, Sinval Silva, Rodrigo Ornelas e Tiago Medeiros são pesquisadores do Laboratório de Estudos Brasil Profundo
BBC News Brasil – O livro argumenta que a resiliência do bolsonarismo está na sua ligação com elementos do “Brasil Profundo”. O que é esse “Brasil Profundo” e como ele serve para entender o bolsonarismo?
Tiago Medeiros – O termo Brasil Profundo é usado, muitas vezes, por acadêmicos e jornalistas de forma confusa e pouco precisa. O que tentamos fazer foi dar um sentido a essa expressão, e usá-la como uma chave de interpretação de fenômenos da sociedade brasileira.
O Brasil Profundo não constitui um conjunto de pessoas, mas de representações, relações e práticas. São coisas que as pessoas fazem, modos de pensar, visões de mundo, que permanecem como aspectos da realidade brasileira em longa duração.
Tentamos rastrear esses aspectos usando uma série de recursos, como literatura, crônicas do século 17 e 18.
Fabio Baldaia – Tipificamos elementos do Brasil Profundo, como o messianismo, a festivização — que não está na análise do Bolsonaro, mas que está em outras análises nossas —, um certo autoritarismo, machismo, coisas que você analisa a historiografia e vê continuidade na história brasileira.
BBC News Brasil – Poderiam explicar melhor alguns desses elementos do Brasil Profundo e como o bolsonarismo ganhou força ao se conectar com esses elementos?
Baldaia – Bolsonaro e bolsonarismo se apropriam de uma estrutura de oportunidade política favorável: o declínio de um modelo econômico adotado nos governos petistas que conseguiu, por alguns anos, garantir alguma melhoria na vida das pessoas. Esse modelo deixou de funcionar. Ao mesmo tempo, houve uma mudança no tabuleiro informacional, com a força das redes sociais, a comunicação por aplicativos.
Com isso, a partir de 2015, abre-se uma janela de oportunidade política. O PSDB não soube aproveitar, declinou, e, por algum motivo, o bolsonarismo conseguiu capturar esse sentimento e articular alguns comportamentos [do Brasil Profundo], alguns discursos.
O simplismo é um desses elementos. A sociedade brasileira mergulhou em uma crise, e o bolsonarismo apresentava soluções simples para os problemas nacionais. Às vezes, em coisas muito sérias. Na pandemia, o discurso simplista era absurdamente aceito em alguns segmentos.
A solução da segurança pública apresentada pelo bolsonarismo também é simples, é só deixar a polícia trabalhar, agir arbitrariamente. Aí entra outro elemento [do Brasil Profundo], o autoritarismo.
Vemos esse encontro do discurso simplista e autoritário não só no âmbito da segurança pública. Nas escolas, basta ter disciplina que tudo vai se resolver.
No âmbito da família, basta restaurar a ordem patriarcal. Então, o simplismo se articula também com o machismo.
O bolsonarismo vai costurando o que está meio difuso na sociedade. Aparece no programa de TV, na novela, no senso comum das ruas. Isso vai sendo amarrado, de uma coisa para outra, construindo uma ação política.
Há também um certo discurso messiânico que se liga ao simplismo, ao autoritarismo e ao machismo. Não é preciso desenvolver instituições para resolver problemas nacionais, econômicos, a gente precisa de um grande líder. Uma liderança masculina forte, que não precisa debater com ninguém.
Na história brasileira, foram vários exemplos: Dom Pedro 2º foi uma figura do líder messiânico, assim como Antônio Conselheiro, Getúlio Vargas, o próprio Lula.
Os elementos do Brasil Profundo não são necessariamente de direita, são elementos que estão aí e podem ser galvanizados.
O Lula também se utiliza desses elementos difusos na sociedade brasileira. O próprio simplismo aparece na maneira como ele fazia uso de metáforas do futebol, principalmente nos dois primeiros governos. Qualquer tema complexo de economia ou política, ele remetia ao jogo do Corinthians ou da seleção.
Inelegível e indiciado criminalmente, Bolsonaro é liderança em declínio, afirmam pesquisadores
BBC News Brasil – O que os resultados das eleições municipais indicam sobre os rumos do bolsonarismo?
Medeiros – O bolsonarismo teve grande êxito em 2018 por ser uma eleição nacional, em que ele foi capaz de ocupar o espaço de antítese de Lula e do PT, após o enfraquecimento do PSDB. Acontece que agora, já depois de Bolsonaro ter perdido parte de sua credibilidade como único líder da direita, depois que saiu do poder e, sendo eleições municipais, o olhar não é exatamente o mesmo.
Acho que dá para manter a tese de que há valores mobilizados na direção da direita no Brasil, embora já não dê para dizer que Bolsonaro seja seu único intérprete. O aparecimento do Pablo Marçal é significativo. Não que Marçal seja herdeiro direto de Bolsonaro, mas consegue estar no lugar certo, na hora certa e mobilizar alguns dos aspectos de longa duração que Bolsonaro estava monopolizando.
No discurso dele, por exemplo, não entra com muita força o aspecto do punitivismo, que está muito forte em Bolsonaro. Mas existe o elemento do antidecoro, de ser rebelde à formalidade do trato das entrevistas, do posicionamento público.
Aparece também o simplismo: qualquer pessoa pode ficar rica, desde que queira. Assim como o machismo, a ideia de que existe uma primazia do homem sobre a mulher e isso reflete a ordem natural das coisas. É assim que Marçal pensa, e ele se conecta com pessoas e grupos que pensam da mesma forma.
Então, as eleições municipais podem indicar, na verdade, que há um movimento de espraiamento, talvez de difusão do legado do bolsonarismo.
Veja que o [governador do Goiás] Ronaldo Caiado está se alçando no centro do país a uma posição de líder, mas também se especula se o Tarcísio [de Freitas, governador de São Paulo] não vai ser o grande vencedor dessas eleições. Será que [governador de Minas, Romeu] Zema vai crescer? Será que ACM Neto [ex-prefeito de Salvador] tem chance, agora que a Bahia está uma desordem na segurança pública?
Estamos diante de uma situação de transição. Não dá para ter clareza objetiva, mas dá para saber que aqueles valores, aqueles elementos de longa duração, estão por aí, aguardando alguém para mobilizar novamente, porque ainda estão na cena da política nacional.
Baldaia – A gente tem que separar a figura de Bolsonaro do bolsonarismo. O bolsonarismo é um movimento político que conseguiu aglutinar interesses e valores que estão presentes na sociedade e que, inclusive, vão além da direita. A figura de Bolsonaro está profundamente enfraquecida. Como cabo eleitoral nas eleições municipais, teve sua força, mas não foi tão decisivo quanto ele imaginava. Nem o próprio Lula foi.
O Jair, em si, talvez esteja num declínio irreversível. Mas os valores professados pelo bolsonarismo estão aí no Ratinho Jr. [governador do Paraná], no Caiado, no Tarcísio.
O Tarcísio consegue fazer o papel de moderado, mas também dizer “olha, sou bolsonarista”. Esse trânsito talvez faça dele uma candidatura bem-sucedida daqui a dois anos para disputar com Lula, se ele for tentar a reeleição, ou outro candidato do petismo.
BBC News Brasil – Por que vê Bolsonaro tão em declínio assim?
Baldaia – Principalmente pela inelegibilidade. Quando você tem expectativa de exercício do poder futuro, consegue já aproveitar o capital político presente. Aí surgem outras figuras que conseguem uma conexão [com as massas], inclusive com uso das redes sociais muito eficiente, como o Nikolas [Ferreira, deputado federal], em Minas Gerais.
Perceba que os filhos de Bolsonaro, que sempre orbitaram a figura do pai, estão preocupados com a ascensão dessas figuras que se descolaram, como se fosse um bolsonarismo pós-Bolsonaro. Não sei se terá o mesmo sucesso eleitoral, porque, em alguns casos, parece um bolsonarismo mais radical, como no aspecto moral.
Porque o bolsonarismo tinha a malandragem de ir e voltar. O malandrismo é outro elemento do Brasil Profundo que identificamos em Bolsonaro. Sempre que alguma coisa parecia muito radical, ele recuava e desdizia o que disse. Esse elemento de malandragem, de escorregar, deslizar entre as formalidades das regras, talvez não seja um movimento que a extrema direita mundial convencionalmente tem.
Outra questão é se vai ter alguma figura capaz de fazer as articulações que Bolsonaro conseguiu. Ele articulava determinada visão militarista da sociedade, com os evangélicos, por exemplo. Marçal não consegue articular tão bem com os evangélicos. Então, talvez os filhos de Bolsonaro não consigam articular tão bem [esses diferentes grupos] para disputar uma eleição majoritária nacional com chance de vitória.
Após indiciamento pela PF, Bolsonaro pode ser denuciando por tentativa de golpe de Estado
BBC News Brasil – Na nossa primeira conversa, vocês afirmaram que Bolsonaro está em declínio. O seu indiciamento por suposta tentativa de golpe de Estado intensifica a percepção de que o ex-presidente está em decadência?
Tiago Medeiros – A decadência agora é um fato, mas ela, de alguma forma, sempre se mostrou vizinha da figura de Bolsonaro.
Em vários momentos, a imprensa noticiou, desde 2019, que Bolsonaro estava prestes a cair, por conta de algum deslize, por conta da relação com os filhos, por conta da ruptura com o olavismo, por conta da ruptura com os militares. Ele sempre esteve vizinho de uma iminência de queda, porque não tem, individualmente, substância política.
Não tem a consistência, por exemplo, de um Ulysses Guimarães [líder da oposição na Ditaura Militar], nem a trajetória de um Lula, nem a clareza programática de um Ciro Gomes. Ele foi alçado à condição de parlamentar e de presidente por fatores de longa duração da sociedade brasileira, que constituem aquilo que a gente, infelizmente, não quer admitir que faz parte da nossa realidade popular.
E a nossa realidade popular é punitivista, é sádica, é autoritária. Inclusive no campo progressista, não raramente, manifestamos em redes sociais o desejo por linchamento. Esse desejo é o punitivismo, o mesmo que elege Bolsonaro.
De forma que, respondendo objetivamente, a decadência de Bolsonaro de agora é um fato, mas o Bolsonaro nunca foi blindado de decadência. Agora, por que ele se mantém com a força que tem? Porque ele tem o apoio popular e funcionou como um amálgama dessas crenças e valores do Brasil Profundo.
BBC News Brasil – Não é contraditório dizer que ele está em decadência, mas se mantém forte pelo apoio popular?
Tiago Medeiros – A decadência a que me refiro, para que ela se consume, tem que ter três fatores de convergência. Primeiro perder o apoio popular, e Bolsonaro nunca teve menos de 25% da população ao seu lado, desde que se tornou presidente.
O segundo fator é perder vitrine política na imprensa, o que ele nunca teve com muita consistência. A imprensa sempre foi antibolsonarista.
Também teria que perder um terceiro aspecto, que é o apoio dos políticos profissionais. Durante a gestão, ele não vinha perdendo, porque ele era presidente.
Agora está perdendo porque tem uma massa pequena de políticos da direita que querem [herdar] um espólio do Bolsonaro.
Mas ele ainda tem a popularidade. Por isso, a decadência nunca se consuma plenamente, ela sempre se avizinha.
Então, dá pra saber o futuro de Bolsonaro, se está totalmente fora do jogo? Nosso grupo chegou à conclusão de que não dá para saber porque a reviravolta do jogo na Justiça é sempre uma possibilidade. O STF, anos depois de rejeitar um habeas corpus para Lula [em 2018], reviu sua posição [ao anular sua condenação em 2021].
É muito complicado ter certeza sobre essas coisas. O Trump [recém-eleito novamente como presidente dos EUA] não teria conseguido êxito eleitoral nos Estados Unidos se houvesse Justiça Eleitoral lá. Nossa Justiça Eleitoral é funcional e creio que Bolsonaro não vai conseguir se candidatar à Presidência em 2026.
Está muito em cima para conseguir uma gambiarra em seu favor. Mas isso não quer dizer que ele está totalmente fora do jogo, até porque ele tem menos idade do que o próprio Lula.
Não dá para saber o que pode acontecer em cinco anos [antes da eleição presidencial de 2030]. Nossa experiência com o STF, principalmente depois que ele passou a ser filmado, é que ele se tornou, me parece, muito mais politizado.
Não sei se seria melhor que não fosse filmado, mas o fato é que, as sessões sendo gravadas, eles se tornam personagens.
BBC News Brasil – As lideranças que disputarão eventual espólio de Bolsonaro podem ser tragadas também por sua eventual queda?
Tiago Medeiros – Me parece que eles vão agir como ratos em um navio prestes a naufragar. Vão esperar o momento certo para sair. O Tarcísio tem mais dificuldade disso, porque ele surgiu de Bolsonaro, foi fabricado por Bolsonaro.
Nikolas Ferreira é fruto da cultura, por assim dizer, bolsonarista, mas ele surgiu por si mesmo, pela internet. O Caiado tem uma carreira própria e foi muito massacrado por Bolsonaro na pandemia porque era médico e não aceitava as maluquices de Bolsonaro. Então, eles não têm uma relação de harmonia plena.
Eu acho que o Caiado, por ser mais maduro, é o que mais vai se projetar na direção de conseguir uma barganha em seu favor, sobretudo se ele conseguir de fato emplacar a imagem de um político que é realmente diferente, mantendo-se associado ao conservadorismo de direita, mas diferente por vários motivos, por ser pró-ciência, porque é médico, por não ser do Sudeste, por ser do centro do país.
Ele, pra mim é o maior inimigo de Bolsonaro neste momento, dentro do campo da direita, porque os demais ainda precisam da figura do Bolsonaro até o último momento.
BBC News Brasil – Caso Bolsonaro e outros indiciados sejam processados e condenados por golpe de Estado, isso também afetaria o bolsonarismo? Poderia causar a decadência do movimento?
Tiago Medeiros – Afeta, sim, no sentido de mexer com o bolsonarismo, o que não significa necessariamente enfraquecer ou mesmo sepultar.
Pode afetar no sentido de tornar mais difuso, como aconteceu, por exemplo, no período da pandemia. Ou, mais recentemente, como o posicionamento do Bolsonaro de viajar para os Estados Unidos [no final do seu mandato].
Naqueles momentos, houve uma difusão do movimento, mas os valores e crenças dessas pessoas não foram desfeitos. Elas permanecem acreditando nas mesmas coisas, que, juntas, formaram o bolsonarismo.
Então, o bolsonarismo pode ser afetado no sentido de se tornar menos coeso e menos coerente, mas ele não parece, a nenhum de nós do grupo, afetável a ponto de diluir, ser sepultado, porque o bolsonarismo é um amálgama de valores e representações que estão difusos por aí e, em um momento histórico, conseguiu se fazer unido na figura de Bolsonaro.
Então, o bolsonarismo vai continuar mesmo que tenha que adotar outro nome, mesmo que outro personagem político surja e dê representatividade a esses valores e práticas de longa duração.
Mas, certamente, com a queda de Bolsonaro não vai ser a mesma coisa. Perde-se o centro [que conecta esses valores e representações, caso Bolsonaro seja condenado].
Para autores, esquerda não produziu novas lideranças capazes de se conectar com as massas como Lula
BBC News Brasil – Historicamente, o campo da centro-direita domina o Congresso e as eleições municipais. Como o PT consegue romper esse predomínio conservador e vencer eleições presidenciais? É porque Lula também se conecta com elementos desse Brasil profundo?
Tiago Medeiros – O Lula nunca foi propriamente um anticonservador. Ele tinha uma agenda, vamos dizer, pelos pobres, uma militância pelo social.
Lula era um bom intérprete das massas que se identificam com o bolsonarismo também hoje. Quer dizer que ele também conseguia puxar sensibilidades, aspecto de longa duração do Brasil profundo.
Um deles é o elemento antissistema. Lula foi o cara que veio da pobreza e teve um discurso antissistema durante um certo tempo. Foi contra uma série de pautas nacionais, inclusive contra o Plano Real, por conta disso, [seria] “o sistema querendo enganar o trabalhador”.
A essa altura, ficou cada vez mais claro que o Lula não conseguia mais sustentar esse discurso, e que o Bolsonaro adquiriu plausibilidade [como figura antissistema].
Não é porque Lula era pobre, foi um torneiro mecânico que ele é quem fala pelos pobres e pelas camadas populares, porque ele já começou a ser aquele cara que vai tomar vinho tinto, viajar pela Europa e querer resolver problemas como o Oriente Médio, em vez de estar resolvendo problemas domésticos.
Mas ele não deixou de estar em conexão com alguns elementos de longa duração do Brasil Profundo.
BBC News Brasil – Poderiam exemplificar mais como Lula se conecta a esses elementos do Brasil Profundo?
Fabio Baldaia – Dos elementos que a gente colocou como elementos do bolsonarismo, o simplismo também aparece no discurso de Lula, a ideia de que é só colocar o pobre no orçamento, aumentar o salário e o Bolsa Família, que você resolve o problema. Não precisa fazer discussão sobre juros, sobre reindustrialização.
Há também um elemento muito messiânico da figura de Lula, inclusive dentro do próprio PT, como “só ele pode fazer isso”.
Quando na articulação política, ninguém está resolvendo, chama o Lula. Lula sai do palácio, desce para campo e resolve. Geralmente ele resolve mesmo, pela habilidade política.
Há um aspecto que a gente também conseguiu perceber no bolsonarismo e aparece em Lula, o autodidatismo. O Bolsonaro não é o homem das letras, é um sujeito simplório e não faz questão de esconder isso.
Ele aprendeu [a atuar] a partir da prática política da vida. Isso, na vida popular brasileira, é muito exaltado — o indivíduo que aprende a partir de trabalho, não necessariamente pelos bancos escolares.
E a própria história de Lula traz um pouco disso. Saiu criança do interior de Pernambuco, veio para São Paulo, se constituiu trabalhando, com todo o esforço.
Tem coisas que são mais destacadas no Bolsonaro, por exemplo, o antidecoro. Claramente, o bolsonarismo é antidecoroso com a formalidade das regras, Lula é muito mais respeitoso com isso.
Mas em determinado momento, se escrevem um discurso pra ele, ele resolve fazer o discurso de improviso. Muitas vezes ele consegue se conectar com a plateia através de um discurso muito espontâneo, justamente porque ele não seguiu a formalidade, inclusive em encontros com chefes de Estado.
E há elementos do Brasil Profundo que não aparecem em Bolsonaro e estão em Lula. Por exemplo, a festivização: o bolsonarismo é um movimento político meio mal-humorado. Ele tem uma relação com a felicidade, com o carnaval e com a festa meio de ojeriza. A relação do bolsonarismo e das extremas-direitas em geral com esse tipo de coisa é muito de controle do comportamento da massa.
E o Lulismo lida muito bem com essa festivização, presente na sociedade brasileira desde a América portuguesa, os carnavais de rua, as festas dos santos.
BBC News Brasil – Como será o pós-Lula na esquerda? Há um vazio de lideranças capazes de se conectar com as massas?
Fabio Baldaia – Lula é muito maior do que o PT, e muito maior do que a esquerda. O país no pós-Lula provavelmente vai tender à centro-direita e à direita, aos temas que são sensíveis e são melhor tratados pela centro-direita e pela direita.
Não há uma liderança de esquerda que substitua Lula hoje. O Haddad provavelmente vai ser o candidato do PT [se Lula não tentar a reeleição]. O Haddad é um tecnocrata, não tem nenhuma condição de estabelecer um diálogo com o Brasil Profundo, no sentido carismático do termo. Ele é um professor da USP.
Então, não vejo ainda outra liderança dentro do PT que consiga dialogar com os valores difusos da sociedade brasileira, trazendo para uma linha de esquerda. Inclusive porque parte importante do discurso da esquerda hoje abandonou o debate sobre a materialidade, sobre a vida econômica, sobre ascensão social, e tem se concentrado nas pautas relacionadas ao comportamento, às identidades, que são importantes, pautas fundamentais, mas que acabaram perdendo um pouco da conexão com outras dimensões.
A centro-direita e a direita têm monopolizado o diálogo com os temas considerados mais sensíveis pra sociedade brasileira. O diálogo da segurança, da família, da educação, da ascensão social. E, ao mesmo tempo, as esquerdas se desconectaram da mudança do mundo do trabalho, que hoje é mais informal. A esquerda não consegue dialogar com esse mundo do capitalismo flexível e não consegue oferecer alternativas.
Nesse sentido, acho que a esquerda está um pouco encurralada, sem oferecer respostas no plano econômico, se apegando a uma pauta das identidades, sem articular essa pauta com outras dimensões.
E, por outro lado, perdendo o seu principal líder, que está em fim de carreira, sem produzir outra liderança. Enquanto a direita e centro-direita têm um processo de renovação muito maior, com liderança de 20 e poucos anos.